domingo, 28 de setembro de 2008

domingo cinza, que maravilha!


Domingo cinza, muita chuva, fim de setembro, pouca grana. Primavera? Frente Fria! Uma xícara de café vai melhor que chope. E o jornal. Artigo pra perder o dia... Um orgia. Festa na metrópole. Um pouco de tudo, você viu?


Caderno de esportes só pra começar: o artilheiro quer vir vereador, um luxo! Na foto, só pra ilustrar, os filhos gêmeos, um casal. Ambos têm nomes que são uma corruptela dos nomes paternos, seguidos de “Maravilha”. Isso mesmo, meu caro: seu filho, como numa fábula, se chamaria Ata Maravilha ou, se você preferisse, Ulfo ou ainda Atufon Maravilha! Ao seu inteiro gosto. Mas, deixa esporte pra lá...


Vamos do início. Política. As eleições estão próximas, o que pode ser mais importante? Pesquisa básica. Seis ou sete candidatos respondem. E as perguntas são simples. Nada de estratégias ou planejamento, que isso é coisa pra depois. Por enquanto só queremos saber se conhecem a realidade... Um pouquinho, vai. Amostra grátis. Coisas como o preço dos ônibus, do pedágio da nossa Linha Amarela. Sabe qual é, né? Aquela que une a tragédia à miséria. Um verdadeiro campo de treinamento de guerra... Mas não vamos desviar do assunto, que eleição é sempre tempo de esperança. A bandeirada do táxi. Conhece? Artigo de luxo! O reajuste do IPTU, como é que se faz? E o lixo, quem retira? Salários, categorias fundamentais – médico, professor e gari... Ataulfo!!!!!!!!!!! Eles não sabem, não conhecem, não ouviram falar. E agora?


Mas calma, falta economia. O mundo está em pânico. Impossível não saber. Alarde. Alarme. Vamos ouvir os especialistas. A frase veio de longe. Nouriel Roubini, professor de Economia da Universidade de Nova York. “...De mercado livre num capitalismo selvagem, hoje adotamos algo que se parece com o socialismo. Mas é socialismo para Wall Street e os bem conectados. Estamos privatizando os lucros e socializando as perdas”.


Por favor, meu amigo, um minuto de silêncio.


Lembrei da conversa de sexta-feira passada. Na sua ausência, sentei com Rita e dona Flores, e elas, pessoas mais risonhas que nós, mais atualizadas na arte de viver bem, descoladas no drible e na ginga, reclamaram de nossa sovinice diante das coisas boas da vida... Assim, fui passear pela revista da TV. Não tinha erro. Folhetins, sessões da tarde e temperaturas máximas... Pois bem, meu amigo, acho que vou ter que tomar umas aulas de direção com as duas “meninas”. A primeira página já anunciava que a sensação do momento é o Dodi... um canalha, mau-caráter, um scarface tupiniquim. Sucesso às 21 horas! Virei a página como se virasse a esquina. Haveria de ter um bom romance. Novela das seis, quem sabe. Entrevista com o autor. Reta final e pasme, diante das crianças e da quarta idade, platéia mais assídua do horário, ele vai enlouquecer à morte a heroína e sem saber o que fazer, vai matar o mocinho também. Tem jeito? Quem sabe amanhã, segunda-feira.


Beijo

Guilhermina



sexta-feira, 26 de setembro de 2008

mais vale um pássaro.



Ataulfo,

É isso que me fascina em você. Essa capacidade de em cinco minutos me permitir discordar de você e nos cinco minutos seguintes me comover, como conseguiu com um roteiro tão simples: andar, ir, vir e querer – revisão e reparação. Queria tatuar suas palavras até que me entrassem pelos poros, percorressem meu corpo até que fossem uma parte tão natural quanto a respiração.

De resto, entendi que partilhamos do mesmo desamparo diante da perspectiva de pagar ingresso para pensar, mas nossos motivos não são os mesmos. E, além disso, acho que seu antagonismo é mais veemente que o meu. Se entendi sua posição, a discussão por si é vão – masturbação diante do precipício. Ela só se justificaria por um ato que deveria ser-lhe conseqüente, como condição de existência, e dirigida ao outro, por causa e paixão.

Se concordo que a existência só se justifica pelo encontro, discordo no entanto de que o exercício do pensamento, tanto em seu vôo solo quanto em companhia do bando, não tenha valor por si. Dois motivos essenciais me garantem tal entendimento de valor, eu diria, inestimável.

O primeiro consiste no credo de que esse exercício, quando solitário, é a única via por onde cada um toma a si mesmo nas mãos, circunscrevendo seus desejos, paixões, causas, conflitos e impedimentos. Dessa forma, trata-se de um ato político e constitucional. Aquilo que nos dá contorno próprio e nos difere da massa que nos ameaça como uma tsunami.

O segundo motivo se escora na premissa de que cada um de nós só se transforma no encontro e, convenhamos, isso se dá na maioria das vezes, sem nenhum glamour ou alarde posto que se anuncia, via de regra, naquele instante em que a palavra alheia nos arrebata como um ato e nos cala. Resumindo, pensar e trocar me parecem um ato e uma arte.

O que me desampara, portanto, reside no fato de que tenhamos nos tornado tão analfabetos que sejamos obrigados a testemunhar esses “cursos” ortopédicos e fisioterápicos da mente, do discurso e da existência. E pior, o impasse: essas são as novas “ordens de troca”, da qual não posso fugir?

Querido, tenho que ir. A gente se vê em breve. Mas, antes, só uma perguntinha: você gosta de salada de atum?

Beijo,
Guilhermina

quarta-feira, 24 de setembro de 2008

ando, vou, venho e quero.


Ando reunindo os mancos

Vou aglomerando os tortos

Venho interrogando os francos

Quero reviver os mortos


Ando organizando os fracos

Vou multiplicando os poucos

Venho rejuntando os cacos

Quero conversar com os loucos


Ando interpelando os fortes

Vou encarcerar partidas

Venho unificando as mortes

Quero indivisível a vida


Ando infernizando os “santos”

Vou santificando a luz

Venho incinerando os prantos

Quero retirar a cruz


Ando atracando os mares

Vou abalroando o cais

Venho ascendendo aos ares

Quero reencarnar em paz


um desejo só, não basta

Querida Guilhermina,

“Suruba” pensante e paga é coito intelectual onde, geralmente, nem todos gozam. Eu, particularmente, venho transformando-me num eremita cerebral que, quando das suas visitas, deleito-me com as trocas, embates e discussões. São escassos os diálogos e intermináveis os monólogos sem um único som emitido. É sempre bem-vinda a sua chegada ao meu “Tibete”.

Amiga, jamais acreditei que discutir o mundo, suas mazelas sociais ou atualizações antropológicas, pelo simples prazer de discuti-lo, ainda mais pagando para, sem ao menos alguma causa, paixão e, claro, a mínima tentativa de concretização da emoção levasse a algum lugar. Quem quer expor as idéias como principio de uma ação, precisa sim, do planejamento pela arquitetura do intelecto, mas, se após a primeira etapa, a engenharia do pensamento não agir e o mestre de obras não acirrar os movimentos dos operários do saber, tudo reverte-se apenas em namoros cerebrais e verbalizações sobre o orgasmo do Papa.


Quem quer, assim como nós, pensa, emite, escreve e absorve o outro para tentar, exaustivamente, mesmo que sejam só dois bípedes elaboradores, objetivar as causas, apalpar as paixões e, no nosso caso, através da Arte concretizar as emoções. Isso tudo nos é doado gratuitamente por Deus. Pagar para pensar me dará a sensação de fisioterapia para um cérebro inerte. E os nossos... PQP!


Em relação ao esfacelamento do pensamento nacional pelos monopólios, quase nazistas, das instituições de poder, concordo integralmente e quero beijar sua alma pelo maravilhoso texto.

Com carinho,

Ataulfo


PS 1: Gui, família é igualzinha a uma lata de atum prensado. Quando se abre e sai o conservante é um Deus nos acuda!!

PS:2 A seguir, em versos...

beijos



terça-feira, 23 de setembro de 2008

quanto custa pensar?

Vamos falar sério! Só nesta última semana duas notícias com o mesmo tema no jornal:
  • A inauguração da Telezoom – um espaço para discutir a atualidade, que tem como diferencial “parecer a sua casa” e não uma sala de aula – numa cobertura aqui do lado, na Dias Ferreira.
  • E agora, no domingo, uma coluna do mesmo veículo descreve para nós o projeto londrino “Escola da Vida”, do escritor Alain de Botton – uma escola com a proposta de pensar a vida através de conteúdo “extra-curricular”.
Como você vê, companheiro, o negócio é mundial! Eu, francamente fiquei dividida: metade já queria saber quanto custava “um curso de pensamento”; a outra me repreendia – quanto custa o quê? Guilhermina!... Guilhermina! Só me faltava essa; agora você vai pagar para pensar?

Já vejo seu cenho franzido com essa minha mania de contar o “causo” sem chegar à conclusão. É que vou pensando enquanto vou falando. Um convite, um pedido pra você pensar comigo. Mas, vem cá, isso não é normal? Eu sempre achei normal pensar, questionar, falar, discutir, ouvir, retrucar, divergir, ponderar, re-fletir, concluir... assim mesmo, com reticências... até que alguém ou eu mesma, por algum motivo, reinicie a questão e lá vamos nós tudo outra vez até encontrar algo de-novo... retificar, ratificar. Ter uma posição. Até ter outra. E isso acontecia na sala da minha casa, ou da sua, num encontro na esquina, no pátio da escola, no campus da universidade, na pizzaria aqui perto, no aniversário de alguém, no chope depois do cinema, no final de semana passado na casa de amigos, aqui bem pertinho: na serra ou no mar... e isso era o normal, assim mesmo, com pronome definido.

É verdade, ainda me lembro bem da primeira vez que experimentei a desagradável sensação de ser uma chata. Estávamos reunidos, alguns amigos de sempre e algumas outras pessoas, daquelas que vão e vêm – namorado ou namorada nova; alguém que alguém queria que conhecêssemos e de repente, sem que eu me lembre do rosto do autor (ainda bem), escutei “Ih, papo cabeça?! Ah, não!” O mundo começava a cindir. De um lado, o saber passou a exigir certificados e títulos, senão não merecia crédito, aliás, nem ouvidos. Do outro, e para uma maioria, comédia virou besteirol (para agonia de Brecht); angústia virou “nóia”; contestação, hard rock. A música perdeu letra e poesia. Puro “balanço” – pode ser pop, lounge, techno, hip hop ou funk, vai? Por algum motivo deve falar inglês e cumprir uma das duas condições: ou gritar bem alto, rave, para se dançar até à exaustão ou apresentar-se too much cool, sem fazer barulho, só o suficiente para preencher vazios... sem dar idéia.

Você sabe, já te falei antes, que penso que essa foi a grande força-tarefa; o maior e mais bem sucedido golpe da ditadura – aniquilar o pensamento crítico e autônomo e devastar o sentido dos grupos e dos encontros. A alienação, a solidão e a ignorância são ótimos aliados do oportunismo. Ficou fácil na medida em que as letras foram sendo substituídas pelos números. Rápido não foi mais necessário saber, bastava estar “antenado” às tendências. Ser fashion e up to date.

A
os poucos que resistiram sobrou o confinamento do pensamento, onde cada um se tornou o algoz de si mesmo, marginal por sua própria percepção silenciosa do mundo.

Agora você entende, meu amigo? Entende minha indignação e meu dilema? E aí, Ataulfo, pago ou não pago para pensar em coletivo?

Por favor, saia desse silêncio, um beijo,
Guilhermina

terça-feira, 16 de setembro de 2008

latifúndio



Meu amigo, não pude vir te encontrar nesses últimos dias... Que saudade e que falta você me fez. Fui ver meus pais no interior e aproveitei para fazer-lhes companhia num daqueles “eventos de família”, sabe? Durante esses três dias pensei muitas vezes em você. Queria sinceramente compartilhar o olhar. Te explico: você já sabe que minha família é enorme. Meu pai teve quatro irmãos e duas irmãs e minha mãe, cinco no total. Imagina quantos primos tenho? E esses por sua vez já tiveram, quase todos, filhos. Progressão geométrica. É de perder a conta! Agora suponha, e só suponha, a variedade da fauna... É impressionante a diversidade humana apesar de uma mesma origem genética!


Passei a infância atravessando a baía de Guanabara naquelas barcas que transportavam carros, antes da ponte Rio-Niterói, rumo ao norte do estado. A viagem era longa, mas os dias de pé no chão e de frutas tiradas dos pés e degustadas ainda suspensa nos galhos valiam a pena. Hoje, no entanto, não sei se são os olhos infantis que inventam sabores ou se o tempo é realmente responsável por oxidar o gosto de quase tudo. Desta vez, depois de muito tempo ausente dos tais eventos, lá estava eu, perto mesmo que “de fora”, na porta da igreja da minha criancice, esperando a noiva que meu primo também aguardava, só que no altar.


Desse lugar privilegiado como o camarote do rei, contei as linhas que o tempo desenhou nos rostos dos antigos heróis. Alguns já quase sem musculatura, esquálidos, mais pareciam cabides cobertos pelos ternos. Outros, ao contrário, carregavam o sobrepeso como se fosse o fardo da própria existência. Os óculos tornaram-se uma parte do corpo, mesmo que algumas mulheres, mais vaidosas, fingissem tratar-se de um acessório. Estavam todos lá: O tio bancário, pacato e encurvado, que sempre se gabou de sua vida programada e previsível ao lado da mulher, que por sua vez orgulhava-se de nunca ter precisado “de trabalhar pra fora”. Ao seu lado, o tio empresário, que está sendo julgado por um dos escândalos que esse nosso país insiste em nos fazer crer tratar-se de uma banalidade... Meu tio continua livre e rico, com seu filho rechonchudo – profissão: assecla do pai. O que eu lamentava só de olhar, minha prima comentava com o marido como o sucesso familiar. O mais velho dos irmãos, também presente, ressentido de, como o pai, ter falido depois de construir o que todos supunham ser um império. E esses dois irmãos, uma reedição de Caim e Abel. Lá estava também a tia solteirona, que passou a vida cuidando da mãe doente de Alzheimer e do irmão esquizofrênico, ambos presentes in memorian. Havia ainda o casal moralista e silencioso, gente de bem – leão e domadora do Lion’s. E claro, o caçula e sua certeza de que tudo ali era perfeito e que ele, o melhor representante dessa certeza.


Estavam lá as primas gêmeas idênticas, a outra que quase morreu no parto, a mais bonita de todas nós, submetida ao marido ciumento, o gay, o que já foi internado para desintoxicação, a que foi traída, a que foi casada com um psicótico e lesada por querer se livrar dele... enfim, os ingredientes que confirmam o meu sentimento de que toda vida é um drama, toda família uma saga. O tom do texto – comédia, terror ou romance – depende apenas do talento do contador da história.


É bom estar de volta, um beijo, Guilhermina.

PS - E você? Por onde anda?

quarta-feira, 10 de setembro de 2008

o medo por companhia


Às vezes, você fala como quem troveja; às vezes, como quem soluça baixinho e só, em plena madrugada urbana. Quanto guarda da dor da existência? Quanto esconde, latente, outra dor? Medo? Quem pode ser melhor companheiro, sentinela e alerta? Dizem até que só podemos seguir com ele – esse imediato daqueles que vêem.


Aliás, não foi exatamente isso que retiraram de nós? A promessa de felicidade não é justamente o mais perverso dispositivo para tornar eficaz a desistência do pensamento, o descarte da indignação, o repúdio às causas, o esvaziamento da palavra e a anulação dos sentimentos?


A genialidade do poder nos últimos quarenta anos não consistiu precisamente do aniquilamento da cultura, realizado por um bisturi preciso, revolucionário e asséptico, chamado entretenimento? Esse demônio maquilado que opera sobre todas as artes, sobre o corpo e sobre os sentidos como um alucinógeno?


Não é a felicidade a granel e embalada para viagem o que justifica toda a política de resultados dos megaeventos, hipermercados e super potências?


Querido, estou cada vez mais convencida que esta droga também foi fabricada. Tem como efeitos colaterais a paralisia e o mutismo, e como objetivo principal o vício. Só isso justifica o delírio no vazio que nos cerca, o qualquer preço que se paga por um “papelote de felicidína”. É preciso ter medo. De outra sorte, restam somente o suicídio ou o assassinato, o que convenhamos, é o mesmo sem sentido.


Em outros tempos, isso teria o nome de genocídio ou holocausto. Que nome as gerações a seguir encontrarão para o nosso destino?


Silêncio,

Guilhermina.

PS. Rita passou por aqui e achou melhor eu tomar um chicabom.

domingo, 7 de setembro de 2008

a pique

Sou como um navio agonizando
Entre os recifes metafísicos.
No momento sinto-me quebrando,
Naufragando nesse mar psíquico

Meus porões se encontram abarrotados
De sonetos, dramas e guerrilhas,
A bombordo sou abalroado
E da gávea, em mim, não vejo ilhas.

O meu equilíbrio, administro,
Por total noção do enlouquecer,
Sinto medo e o temor é tão sinistro...
Mas perdê-lo é pior que me perder.

Pois pensar perder-me dá pavor,
Eu detesto o mar da insanidade.
Entre o porto e o abissal da minha dor
Eu Pacifico, já sou calamidade.

No tombadilho, à noite, um cortejo
De fantasmas do meu coração
Vou naufragando, enfim, nos meus desejos
E me afogando com a tripulação.


Acho, Guilhermina, que desvario é um “medidor de felicidade”...
beijo do Ataulfo

sexta-feira, 5 de setembro de 2008

silêncio e zoeira



Esperei por você e senti sua falta quando você não veio. Tomei um chope e mais outro, tentei seu celular, mas você não atendeu. Aliás, não entendo porque você carrega esse aparelho? Tomei a solitária derradeira e resolvi caminhar na praia. Sabe o que é? Acho interessante observar as pessoas sozinhas sentadas num bar. Têm uma autonomia, uma liberdade... Mas eu? Sempre acho que serei o retrato do desamparo. Neura?


Bem, fui andar. O barulho, a brisa, a bola voando de um lado para o outro desenhava o ziguezague do meu pensamento. Nostalgia? Não sei se é esse o nome. Um quê de tristeza, uma pitada de inquietação, silêncio e depois zoeira, zoeira e depois silêncio. Acho que é o meio-dia... Lembra daquele texto? Hélio Pelegrino, tenho quase certeza... prefácio de O Homem Nu do Sabino?


O homem, quando jovem, é só, apesar de suas múltiplas experiências. Ele pretende, nessa época, conformar a realidade com suas mãos, servindo-se dela, pois acredita que, ganhando o mundo, conseguirá ganhar-se a si próprio. Acontece, entretanto, que nascemos para o encontro com o outro, e não o seu domínio. Encontrá-lo é perdê-lo, é contemplá-lo em sua libérrima existência, é respeitá-lo e amá-lo na sua total e gratuita inutilidade. O começo da sabedoria consiste em perceber que temos e teremos as mãos vazias, na medida em que tenhamos ganho ou pretendamos ganhar o outro. Neste momento, a solidão nos atravessa como um dardo. É meio-dia em nossa vida, e a face do outro nos contempla como um enigma. Feliz daquele que, ao meio-dia, se percebe em plena treva, pobre e nu. Este é o preço do encontro, do possível encontro com o outro. A construção de tal possibilidade passa a ser, desde então, o trabalho do homem que merece o seu nome.


É isso! Me sinto assim. Culpa dos trinta e treze? Pretensão dos mais de quarenta: meio-dia!? A gente gosta de acreditar que vamos viver no mínimo oitenta... e poucos... Será que é um jeito de acreditar que pode viver tudo de novo? Ou tudo diferente? Sinceramente, eu; nem uma coisa, nem outra. Não dispenso quase nada do que trago comigo, nem gosto muito de reedições. Adoro a saudade. É ela quem me conta a minha história. Gostaria é de mais: mais um filho, mais dinheiro, mais prazer, mais tempo, mais... Não é isso que nos faz SER humano?


Às vezes sinto que é como correr a maratona. Na partida, tudo ousa-dia e certeza. Perto do meio do caminho, iniciamos certa administração do aparelho. Uma certa economia. Relutância, talvez? Um pouco depois, metade da gente se pergunta para onde estamos indo e por quê? A outra metade grita: Desistir agora?! Não! Você já veio até aqui – negocia. É... mas falta o ar, a musculatura cansa, a boca anseia. É o coração que insiste?


A bola bate na rede e cai, inerte na areia. Ah, Ataulfo, se você tivesse aparecido sabe o que eu iria te perguntar? Depois do desengano, o que vem é o desvario?

Hein, Ataulfo? Saudade,

Guilhermina


quarta-feira, 3 de setembro de 2008

sobre o medidor de felicidade

Que bom te encontrar por aqui. Mas francamente, Ataulfo, enquanto estou entre desenganos, você me vem com lascívias e santidades!
...

Você viu hoje no jornal? Inventaram agora um “medidor de felicidade” e chegaram à conclusão que o Brasil ocupa atualmente uma honrosa 22ª posição entre os países do mundo. E tem mais: numa perspectiva de futuro, projeta-se para o primeiro lugar em otimismo, seguido pela Venezuela. Só mais um detalhe – considerando somente a população jovem (entre 15 e 29 anos), a média alcançada pelo “medidor” aproxima-se de DEZ (9,29)!

Eu, esse casmurro de saias, já comecei encasquetando. Foram muitas as perguntas pipocando nesta caixola.

1. Quais os parâmetros de um “medidor de felicidade”? – Freud, há quase um século, atribuía a felicidade a uma subjetivação articulada ao amar e trabalhar. Algo como um sentimento rebote da produtividade e do encontro com o outro. E que certamente os números não seriam bons tradutores. Tudo isso já caducou?
2. Como esse “medidor” diferencia felicidade de alienação? – A avó de uma amiga sempre disse a ela que o anjo da guarda protege até o momento da consciência. A vó já se despediu faz tempo, mas a minha amiga tem dúvidas até hoje sobre a consciência ser um bom negócio.
3. Os pesquisadores que trabalharam com o fantástico “aparelho” atribuíram a dois fatores esse otimismo todo: o econômico e o cultural, mas ora, se os cinemas estão vazios deixando até os poderosos empresários da indústria cinematográfica preocupados; os teatros vendidos para as igrejas universais(!?); e a música – um dos nossos mais valiosos bens culturais – comandada pelos Mcs... de que cultura eles estão falando?
4. Aliás, eles quase não falam mesmo, porque depois dessa citação à cultura como um fator, todos os indicadores são numéricos e fundamentados na receita, supostamente gerada da relação trabalho e renda. Devemos concluir então que realmente é o dinheiro que traz felicidade? A subjetivação de que falávamos está reduzida a alguns números, uma vírgula e duas casas decimais? E o amor?
5. As últimas pesquisas não indicaram o nosso sistema educacional como um dos piores do mundo? E a Venezuela ali coladinha? Será que vamos encontrar felicidade daqui a pouco no supermercado? Enlatada e com o rosto do Hugo Chaves no rótulo? Você vai comprar?

Não sei não, meu caro Ataulfo, mas lembra daquela conversa de milagre econômico? Afinal, onde que entra nessa história os números da dengue? Dos que se alimentam de restos ou não se alimentam, dos que morrem nas esquinas, vítimas da violência em cidades como a nossa, São Paulo, Recife e outras tantas? Será que esses números são milicianos?

Não éramos os filhos de um país que samba e chora? Quando foi que viramos filhos de um país que ri e créu? Acho que você deve ter razão... Melhor ficar entre orações e pedidos de clemência e perdão.

E aí, Ataulfo, o que me diz?

terça-feira, 2 de setembro de 2008

a minha e a dele



Às vezes Deus conversa comigo

Como eu converso com meu cachorro.

Ele fala e eu ouço submisso.

Meus olhos pedem socorro

E meu coração permanece a meio-pau.


Quatro horas da manhã.

Depois de tropeçar muito nas calçadas da minha alma

E mendigar nos subúrbios do meu espírito,

Ele, complacente, novamente

Esvazia o meu celeiro de dor.


Ele me fala de Maria.

Da minha e da Dele.

As duas, delicadamente, trata de Senhora.

A minha, é minha por exclusividade;

A Dele, generosamente, é nossa.


Cinco horas da manhã.

O Deus cansado da rotina da onipotência,

Deita-se em minha rede e como um Pai que se humaniza

Pede uma canção de ninar no violão.

Eu toco e Ele adormece.


Guardo o instrumento. Olho pras duas Marias.

A Dele em gesso no oratório.

A minha, lânguida no dormitório.

Pra Dele eu faço uma oração.

Pra minha...Deus que me perdoe!!!!!!


Beijos,

Ataulfo

o ideal e o desengano

Queria ter o dom de fazer rir mesmo em pleno deserto. Mas essa sua conversa só me faz pensar em um assunto mórbido: uma trapaça que a nossa língua, cheia de malícia e armadilhas, me pregou com a palavra desenganado. Somos desenganados frente à ameaça de morte (como se todo dia ela não fosse uma hipótese).

Passamos por toda a vida, então, enganados?

Pode ser pura miopia narcísica, mas confesso, não suportei essa idéia. Desde então, passei a tentar resgatar quantas mortes já vivi. Falo de cada momento em que estive desenganada, em que tropecei no equívoco de mim mesma. Cada momento em que desmascarei, diante do espelho, a justificativa perfeita para uma certeza medíocre. Reparei que todos esses momentos se deram em derrotas, quando perdia algo de muito importante pra mim. Pois é, meu caro, a perda te rouba um pedaço, te obriga a um luto, te exige rever parte da responsabilidade. Não é isso o desengano? Essa desordem no que antes parecia um organismo logicamente funcional?

Mas como?! Se nossa Era só reconhece os vitoriosos, que nos resta senão sermos os nossos clones de suce$$o? Tolos e enganados.

Não foi, portanto, o Ideal que desistiu. Fomos nós. Ele permanece em seu Olimpo, tão sedutor e majestoso quanto pernicioso e voraz. Só aceita em seu exército aqueles que suportam perder. Suportam, sem conforto.
Até já,
Guilhermina

eu preciso saber

Eu preciso saber qual de nós não traiu.
Em que beco ou viela a esperança “caiu”,
Se no vão do caminho a ternura fugiu
Ou tombou?!

Eu preciso saber
Se do inventario do tempo o ideal desistiu,
Se do seu testamento herdou-se o covil
Ou tornamo-nos vis como quem nos combaliu,
Torturou?!

Se tu sentes saudade de quem já partiu,
Que na flor da idade não se despediu
Pra nos dar liberdade na idade da flor
Ou, como eu,
Apagaste a memória da noite de abril
E dopaste a história com medo do ardil
E sangraste de álcool, de droga e temor!?

Guilhermina,
Sei que choras como eu
Que não parei de sonhar pra viver,
Que simplesmente vivi pra sonhar
Buscando uma causa nas “batucadas da vida”,
Nos cemitérios do ego ou nas esquinas do inconsciente!!

Te encontro no Jobi, entre moelas e goles de chope.
Beijos,
Ataulfo