sábado, 27 de dezembro de 2008

de passagem

Como vocês sabem, por ora esta esquina vive de reminiscências. Como as mulheres no cais, espero, quem sabe, a volta de Ataulfo. Mas não espero parada, que isso é coisa para as moças de recato. Não é o meu caso. De todo modo, passei para lhes contar duas coisas: Primeiro, encontrei-me com Ataulfo nos festejos natalinos. Não conversamos muito, mas nos soubemos ali. Presenteei-lhe, inclusive, com a camisa do Flamengo, que ele não tardou a vestir. Estilizada: branca, como lhe convém, com as letras CRF entrelaçadas em vermelho e preto. Logo abaixo, as antigas palavras de ordem – raça, amor e paixão.


Não lhe perguntei por onde anda, nem ele me perguntou de onde eu vinha. Por estilo próprio, não sou muito afeita a silêncios. Ao contrário, prefiro sempre as palavras que esclarecem e permitem retificações. Mas, confesso, há algum tempo que dispenso monólogos ou imposições verbais. Não gosto de palavras que escondem, que impedem. Gosto das que revelam. E essas só são acessíveis a interlocutores que as desejem como um encontro.


A outra coisa, encerrando o ano, é que na esquina do desacato já me encontro acompanhada. Tem quem passe só pra deixar um recado, um alô; mas tem também quem chega trazendo Pessoa, em grande estilo. Rita até já fez discurso! Vou insistir no convite, desejando que sentem-se para um colóquio. A gente se vê.


Beijo

Guilhermina

domingo, 14 de dezembro de 2008

ermo

Depois que deixei o bilhete para Ataulfo, andei pela avenida que tem seu nome durante o resto da noite, quando o caleidoscópio urbano silencia dando vez à amplificação dos sons que vêm de dentro.

Em toda despedida, mesmo que temporária, visito as mesmas sensações. Se me engasgo na emoção do desamparo, também me convoca a necessidade da ampliação. De visitar novos sentimentos, de seguir enfrentando outros desafios. Toda separação nos obriga a revisões, mas como um motorista, que sem perder a continuação da estrada, vasculha o espelho retrovisor.

Rita quis vir andar comigo, mas pedi a ela que me aguardasse voltar. Queria seguir só. Não olhei para trás. Não precisava. Tinha a certeza de que ela me aguardava na sua esquina, me acompanhando com os olhos de um anjo da guarda, silenciosa, como quase sempre ela é. Só você Rita, só você.

Eu presto muita atenção ao que o meu irmão ouve”... Quando Calcanhoto escreveu o verso, traduziu pra mim um sentimento que não encontrava as sílabas. Provavelmente pela distancia dos anos de diferença (quando meu irmão nasceu, eu já conhecia o esboço das minhas matizes) ele foi minha primeira lição de rejuvenescimento. Não sei se ele sabe o quanto lhe sou grata por me indicar novos anseios, me atualizar as percepções e me obrigar a novos entendimentos. Numa das noites da última semana, ele veio ao meu encontro e caminhamos um pouco, juntos. Você tem razão, querido: o desejo de uma esquina virtual é meu. Se Ataulfo aceitou meu convite, foi muito bom, mas por algum motivo, não o suficiente para que ele fizesse também dele essa “parada obrigatória por eleição” no final do expediente. Um happy hour. Uma das coisas boas que a língua inglesa nos empresta. Dizem até que felicidade é assim. Um fragmento do tempo.

Na quarta-feira, entrei pela João Lyra e segui até desembocar na Conde de Bernadotte. Virei à direita e parei para uma cachacinha na Academia. Nosso uísque nordestino devolveu-me um pouco da lembrança do cheiro da terra, do gosto das retiradas, da peixeira resolvendo afrontas e da rede tecida por mãos calejadas, enquanto se entoa o lamento, até que pronta, seja lançada ao mar, debaixo do sol tropical. Gonzaga veio com o zabumba e a sanfona; e Jackson com o pandeiro. O resto foi música.

Na noite seguinte, trafeguei pela Rota 66, que passa bem ali do lado. “Uma estrada de poeira e desolação, de fama e fortuna. Selvagem e solitária; doce e infinita”. Desta vez, o som ficou por conta de Janis Joplin e Jimmy Hendrix, que vieram chorar com a voz e com a guitarra. O resto foi indignação.

Na sexta voltei ao mesmo território e logo a seguir dei de cara com o Desacato. Tim Maia me recebeu no telão. Depois Cássia Eller cantou olhando pra mim. ... Prevê a dor e diz que a vida é feita de ilusão... Sentei e pedi um chope.

O Bispo do Rosário e o Profeta Gentileza também se aproximaram. Discursaram. Ora diretamente para mim, ora para a rua, como se quisessem penetrar a pedra da selva de arranha-céus. Pedi a benção, ansiando junto tanta inspiração. Quem sabe um dia a loucura também seja a minha sanidade. O resto foi um bicho que morde dentro e que resiste, empurra, insiste. Eu soube então que escolhera um novo lugar.

Liguei para Rita e convidei-a a vir ao meu encontro, anunciando meu novo endereço errante: www.esquinadodesacato.blogspot.com

Todos estão convidados. Espero vocês lá.
Beijo
Guilhermina.

terça-feira, 9 de dezembro de 2008

mais que respiração

Querido,


Difícil olhar a tua cadeira vazia, mesmo que por “algum tempo”. Retorno ao nosso primeiro encontro nesta esquina, há aproximadamente três meses, quando me extasiava com a perspectiva do nosso “re-encontro marcado”. Não por imperativo algum, mas por desejo confesso e partilhado. Não por promessa, mas por pacto. De amizade, de identidade, escolha e arbítrio. Se ansiei por um compromisso, foi assim por afeto e admiração; e é verdade, pelo que reconheço como raridade em alguns encontros dessa nossa estrada breve, surpreendente e efêmera. Jamais previ terno e gravata; relógio e espartilho ou outros apetrechos que nos apertasse a respiração.


De outra sorte, sei da tua desconfiança por espaços virtuais. Assim como sei das tuas giras, corridas desde carnavais mais remotos, em busca do pão e das outras necessidades do todo dia. Por isso mesmo, o virtual me pareceu uma contribuição desses nossos tempos hostis, porque a qualquer momento do dia, ou das madrugadas que sabemos preciosas para nós dois, podemos escapar para além das necessidades, para além do metal que atormenta tanto na falta quanto no excesso, para além das crises numéricas; e encontrar nas palavras, um território onde a subjetividade é a imperatriz.


Lamento sua falta, com saudade antecipada. Detesto me despedir, mesmo que temporariamente dos que amo com zelo e admiração. Sabemos que podemos sobreviver às distâncias, às ausências e aos silêncios; mas para mim, a vida assim é mais triste. E se algum dia tive vergonha da confissão do afeto, do desejo ou mesmo da necessidade de alguém, já há muito esta vergonha me abandonou. Desde o dia que compreendi ser este um dos poucos motivos no qual a tristeza se faz digna.

Quanto a abrir a roda em nossa esquina, acho que vou preferir andar por aí. Da história que se escreveu na Dias Ferreira, esquina com Aristides, preserva-se a memória, mas nunca mais se há de desejar o preço da vida. E nisso, tenho certeza que concordamos.


Em tempos de encerramento de campeonato, meu coração, que você sabe tricolor, respira aliviado, fora da zona de rebaixamento. É pouco. E é tanto! Salpico, na tua galera rubro-negra, talco com água de cheiro e a ti desejo, em especial, além do ar; raça, amor e paixão. É nessa arquibancada mista, aonde sempre nos encontramos, que continuo te desejando. Mande notícias.

Um beijo,

Guilhermina


domingo, 7 de dezembro de 2008

nas esquinas e nos botecos


Guilhermina,


As esquinas e os botecos são, talvez, os espaços mais democráticos num conjunto social. Locais onde, pelo menos na minha mocidade, os seres pensantes, sem tempo pré estabelecido, aglutinavam-se para pensar o país, as artes, as modas e, até mesmo, a possibilidade da troca de confidências. Eram os lugares preferidos do ente literário para o exercício do falso silêncio e da observação. Nas esquinas ele absorvia o próximo personagem a ser criado ou, numa noite de pouca inspiração, num boteco qualquer, deixava a imaginação ir de encontro a algum par de olhos azuis.


Nas esquinas e nos botecos, os amigos reuniam-se sem horário nos lábios e sem cobrança no coração. Aliás, amigo, amigo mesmo, no meu entendimento, não se entrega a exigência do impor. As esquinas e os botecos não tem donos, capatazes ou patrões. As esquinas e os botecos odeiam as ambições profissionais. As esquinas e os botecos são pousadas obrigatórias, construídas pelo imaginário das criaturas atormentadas pelo Divino Ócio, pela contramão da precisão, pela mão única da ira apaixonada, pelas cafetinas da melancolia, pelos sentinelas da vingança, pelas trevas da lua negra, pelos cronistas da alma, pelos vampiros do sangue das canções, pelos ébrios jornalistas, pelos dramaturgos, pelos músicos e pelos poetas. Essas criaturas não vivem encarceradas ao tempo real do planeta. Não usam relógios. Não marcam encontros. Elas se avistam! E por esse simples fato, sentem-se felizes! Alegres pela constatação que os próximos, os comuns, os raros, estão vivos, respirando, sofrendo e comungando ou discordando dos nossos pensamentos e manias. Mas, acima de tudo, vivos!


Ando ausente das esquinas e dos botecos, pelo muito de afazeres que a vida vem me destinando. Esses sim, com hora, data e prazos. Ando ausente das esquinas e dos botecos pela exigência da profissão e, como disse antes, não a levo para o templo do Divino Ócio. Ando ausente das esquinas e dos botecos pelas agruras do cotidiano. A nova ordem econômica é temerosa...


Ataulfo com Guilhermina é uma esquina histórica, assim como, Aristides com Dias Ferreira. Pisaram em suas pedras portuguesas, no final dos anos sessenta, pés que tornar-se-iam clandestinos durante a ditadura militar. Os meninos da Aliança de Libertação Nacional. Eram encontros pela liberdade de ser, de estar, de locomover-se, de permanecer sem exigir do outro mais que o limite da vida. Por isso, Guilhermina, pra ti não desejo mais que a respiração!


Devo me ausentar por um tempo. Faça da nossa esquina e boteco, locais de convergência para outros pensantes.

Sem descortesia,

Ataulfo


sábado, 6 de dezembro de 2008

independência?

Independência nada mais é do que ter poder de escolha.

Não é sinônimo de solidão. É sinônimo de honestidade”.

Martha Medeiros


Independência = poder de escolha = honestidade ≠ solidão (?)


Li e reli a frase tentando identificar o que pensava e sentia a respeito dela. Não satisfeita, deixei sedimentá-la. Medo de precipitar-me? Talvez. No primeiro instante concordava com ela. E no instante seguinte, um incômodo não me permitia simplesmente arquivá-la.


Alguma coisa na ordem dos fatores, na sinonímia talvez, nas referências de igualdade. Vou dar tratos à bola, quem sabe Ataulfo, você vem em meu socorro.


Honestidade diz respeito a um modo de ser. Às vezes me parece até uma escolha em si, antes da escolha. Um terreno, um princípio, não exatamente no sentido moral; antes ainda, num sentido condicional. Honestidade não é, portanto, um de acordo com o que quer que seja, mas uma forma pela qual buscaremos realizar a escolha que for. Diz respeito a muito mais do que querer verdadeiramente algo; diz respeito a poder responder pelo que se quis, tomando para si a parte que lhe cabe dos efeitos do seu ato de escolha. O dicionário, inclusive, remete honestidade à probidade e à compostura. Num primeiro momento isso poderia ser compreendido como uma retidão inflexível e antiquada, mas uma reflexão, só um pouquinho mais ampla, nos indicará não essa rigidez arcaica, mas uma integridade, uma possibilidade de inteireza (probidade) e de composição (compostura). Sim, é preciso compor. Compor com as conseqüências de nossas escolhas anteriores, por exemplo. Especialmente aquelas que envolvem outros.


É verdade que devemos honestidade antes de tudo a nós mesmos. E somos seres mutantes, envolvidos numa dinâmica constante de interesses e condições, que nos exigem uma revisão de escolhas o tempo todo. Cada vez mais estou convencida de que não é o mundo que nos cobra coisa alguma, mas a nossa história. Àquela que escrevemos com nossas escolhas anteriores e os efeitos delas. Se a educação muito se põe como serva da moral e dos bons costumes, ditados pelas leis da tradição e propriedade; o “tenho que ser verdadeiro comigo mesmo” contribui para vivermos em recortes, como se não escrevêssemos um texto inteiro. Se não podemos prometer a ninguém sermos com-preendidos, temos sim o dever de inferirmos sobre causas e efeitos de nossas escolhas. E, longe de deixar de fazê-las, fazê-las com cuidado.


Seguindo, na direção do pensamento que a frase da Martha nos indica, a honestidade se difere ou se distancia da solidão. É? De certo modo, me parece que sim, posto a constância do nosso desejo de encontro com o outro. Mais que isso, desejamos ser para alguém. E, mesmo convencidos pelo poeta de que esse encontro só poderá ser eterno (se honesto) enquanto dure, dá um trabalho danado e uma dor imensa os sonetos de separação. Mas, por outro lado, quando não somos sós nas escolhas? Como se pode escolher senão pela intrínseca condição de fazê-lo só? Qualquer tentativa de escolher acompanhado ou determina o contorno da tirania ou a vontade (às vezes irresistível) de atribuir ao outro a responsabilidade por essa escolha...


No final das contas, então, não é somente sozinhos que podemos alcançar a independência de escolher? Honestidade e solidão não são condições pares da escolha?


Mais um pouco: Independência! Ou Morte? Não consigo supor independência sem autonomia e sem liberdade. Não somos, e ninguém é independente e livre. Somos, na melhor das hipóteses, bons negociadores na eterna cadeia de interdependência que a vida nos determina como um fato. Nossa odisséia nasce na necessidade do olhar, o mais poderoso de todos os grilhões. Sem o olhar não somos coisa alguma e não suportamos isso. Nascemos ao mesmo tempo ávidos e avessos ao olhar que nos delineia numa imagem, à qual ora queremos corresponder, ora fugir em disparada, como se longe dela pudéssemos ser esse “outro livre”. Resumindo, ou somos inteiramente dependentes ou damos vida à nossa própria escultura para além de criatura, visitarmos, mesmo assim ocasionalmente, a posição de criador.


Desculpe-me, Martha, mas a minha frase seria: Sós e honestos, a interdependência nada mais é do que podermos fazer e suportar nossas escolhas

(sós + honestos = interdependência = fazer + suportar escolhas).


Beijo,

Guilhermina

quarta-feira, 3 de dezembro de 2008

carta ao Anônimo

Prezado Anônimo,


Você não imagina o prazer de encontrar suas palavras. É muito bom saber que falo a mais alguém além dos “nobres” que passam por esta esquina. Dá-me a sensação de romper divisas, revigorando em mim o prazer de compartilhar este vício pelo pensamento.


Na verdade, hoje mesmo, uma das minhas filhas me disse que minha compulsão não é por alguma coisa, mas pela própria compulsão. Acho que é verdade, às vezes tudo só me parece encontrar sentido no muito. Muito qualquer coisa, desde que muito. Confesso que esse traço que me constitui ora me assusta, numa tangente qualquer do enlouquecimento; ora me encanta, numa mediatriz da entrega e do apaixonamento. Mas tenho um defeito a mais, posso muito pouco (que ironia!) sozinha. Por isso mesmo, até um blog, para ser meu, propus em parceria. Isso me irrita. Esperneio, ralho, blasfemo, brigo comigo mesma, exigindo-me aprender a caminhar só, mas ando um ou dois quarteirões e quando dou por mim, já estou novamente estacionada, à espera de algum outro que me acompanhe nas andanças e destinos. Por tudo isso, o recente silêncio de Ataulfo, com quem combinei me encontrar nesta esquina, um tanto me cala também. Dialogar não é o mesmo que ouvir somente ecos, certo?


Tuas palavras, no entanto, me convocaram. Fizeram-me lembrar de uma frase que ouvi faz alguns anos, acho que do Afonso Romano de Santanna – quem espera coagula no tempo... Assim, de repente, acho que preciso aprender a caminhar com estranhos, anônimos, estrangeiros. Entabular, em línguas diferentes propostas distintas. Aprender novas semânticas, arriscar novas idéias.


Não. Não é a primeira vez que ouso propor-me a isso. Sabe onde reluto? Sempre na sensação de que não quero ser eu quem abandonou. Mais um muito de que preciso. O da insistência.


Como você vê, sou “neuroticamente leal”. Se isso é bom? Não sei. Cobra seu preço. Mas o que vale realmente na vida que não tenha um alto custo? De todo modo, podemos caminhar um pouco além, até algumas esquinas adiante. Revelarmo-nos mais, até que, quem sabe, façamos diferença um para o outro, além dos títulos, além das convenções, além das distâncias. É o grau de intimidade e permanência que difere as relações sociais das pessoais, você não acha? São estas últimas as que realmente me interessam.


É exatamente por isso, pela diferença que Ataulfo faz pra mim, que ainda lhe dou crédito, que ainda acredito que ele estará sentado aqui no Jobi, amanhã ou depois, para me contar alguma história que explique sua ausência e sua descortesia.


Então, vamos? Que tal começar me dizendo seu nome? Ou devo continuar a lhe chamar de Anônimo? Quanto a mim, você já sabe: Guilhermina. Rainha, só para os mais ímtimos.