sábado, 27 de dezembro de 2008

de passagem

Como vocês sabem, por ora esta esquina vive de reminiscências. Como as mulheres no cais, espero, quem sabe, a volta de Ataulfo. Mas não espero parada, que isso é coisa para as moças de recato. Não é o meu caso. De todo modo, passei para lhes contar duas coisas: Primeiro, encontrei-me com Ataulfo nos festejos natalinos. Não conversamos muito, mas nos soubemos ali. Presenteei-lhe, inclusive, com a camisa do Flamengo, que ele não tardou a vestir. Estilizada: branca, como lhe convém, com as letras CRF entrelaçadas em vermelho e preto. Logo abaixo, as antigas palavras de ordem – raça, amor e paixão.


Não lhe perguntei por onde anda, nem ele me perguntou de onde eu vinha. Por estilo próprio, não sou muito afeita a silêncios. Ao contrário, prefiro sempre as palavras que esclarecem e permitem retificações. Mas, confesso, há algum tempo que dispenso monólogos ou imposições verbais. Não gosto de palavras que escondem, que impedem. Gosto das que revelam. E essas só são acessíveis a interlocutores que as desejem como um encontro.


A outra coisa, encerrando o ano, é que na esquina do desacato já me encontro acompanhada. Tem quem passe só pra deixar um recado, um alô; mas tem também quem chega trazendo Pessoa, em grande estilo. Rita até já fez discurso! Vou insistir no convite, desejando que sentem-se para um colóquio. A gente se vê.


Beijo

Guilhermina

domingo, 14 de dezembro de 2008

ermo

Depois que deixei o bilhete para Ataulfo, andei pela avenida que tem seu nome durante o resto da noite, quando o caleidoscópio urbano silencia dando vez à amplificação dos sons que vêm de dentro.

Em toda despedida, mesmo que temporária, visito as mesmas sensações. Se me engasgo na emoção do desamparo, também me convoca a necessidade da ampliação. De visitar novos sentimentos, de seguir enfrentando outros desafios. Toda separação nos obriga a revisões, mas como um motorista, que sem perder a continuação da estrada, vasculha o espelho retrovisor.

Rita quis vir andar comigo, mas pedi a ela que me aguardasse voltar. Queria seguir só. Não olhei para trás. Não precisava. Tinha a certeza de que ela me aguardava na sua esquina, me acompanhando com os olhos de um anjo da guarda, silenciosa, como quase sempre ela é. Só você Rita, só você.

Eu presto muita atenção ao que o meu irmão ouve”... Quando Calcanhoto escreveu o verso, traduziu pra mim um sentimento que não encontrava as sílabas. Provavelmente pela distancia dos anos de diferença (quando meu irmão nasceu, eu já conhecia o esboço das minhas matizes) ele foi minha primeira lição de rejuvenescimento. Não sei se ele sabe o quanto lhe sou grata por me indicar novos anseios, me atualizar as percepções e me obrigar a novos entendimentos. Numa das noites da última semana, ele veio ao meu encontro e caminhamos um pouco, juntos. Você tem razão, querido: o desejo de uma esquina virtual é meu. Se Ataulfo aceitou meu convite, foi muito bom, mas por algum motivo, não o suficiente para que ele fizesse também dele essa “parada obrigatória por eleição” no final do expediente. Um happy hour. Uma das coisas boas que a língua inglesa nos empresta. Dizem até que felicidade é assim. Um fragmento do tempo.

Na quarta-feira, entrei pela João Lyra e segui até desembocar na Conde de Bernadotte. Virei à direita e parei para uma cachacinha na Academia. Nosso uísque nordestino devolveu-me um pouco da lembrança do cheiro da terra, do gosto das retiradas, da peixeira resolvendo afrontas e da rede tecida por mãos calejadas, enquanto se entoa o lamento, até que pronta, seja lançada ao mar, debaixo do sol tropical. Gonzaga veio com o zabumba e a sanfona; e Jackson com o pandeiro. O resto foi música.

Na noite seguinte, trafeguei pela Rota 66, que passa bem ali do lado. “Uma estrada de poeira e desolação, de fama e fortuna. Selvagem e solitária; doce e infinita”. Desta vez, o som ficou por conta de Janis Joplin e Jimmy Hendrix, que vieram chorar com a voz e com a guitarra. O resto foi indignação.

Na sexta voltei ao mesmo território e logo a seguir dei de cara com o Desacato. Tim Maia me recebeu no telão. Depois Cássia Eller cantou olhando pra mim. ... Prevê a dor e diz que a vida é feita de ilusão... Sentei e pedi um chope.

O Bispo do Rosário e o Profeta Gentileza também se aproximaram. Discursaram. Ora diretamente para mim, ora para a rua, como se quisessem penetrar a pedra da selva de arranha-céus. Pedi a benção, ansiando junto tanta inspiração. Quem sabe um dia a loucura também seja a minha sanidade. O resto foi um bicho que morde dentro e que resiste, empurra, insiste. Eu soube então que escolhera um novo lugar.

Liguei para Rita e convidei-a a vir ao meu encontro, anunciando meu novo endereço errante: www.esquinadodesacato.blogspot.com

Todos estão convidados. Espero vocês lá.
Beijo
Guilhermina.

terça-feira, 9 de dezembro de 2008

mais que respiração

Querido,


Difícil olhar a tua cadeira vazia, mesmo que por “algum tempo”. Retorno ao nosso primeiro encontro nesta esquina, há aproximadamente três meses, quando me extasiava com a perspectiva do nosso “re-encontro marcado”. Não por imperativo algum, mas por desejo confesso e partilhado. Não por promessa, mas por pacto. De amizade, de identidade, escolha e arbítrio. Se ansiei por um compromisso, foi assim por afeto e admiração; e é verdade, pelo que reconheço como raridade em alguns encontros dessa nossa estrada breve, surpreendente e efêmera. Jamais previ terno e gravata; relógio e espartilho ou outros apetrechos que nos apertasse a respiração.


De outra sorte, sei da tua desconfiança por espaços virtuais. Assim como sei das tuas giras, corridas desde carnavais mais remotos, em busca do pão e das outras necessidades do todo dia. Por isso mesmo, o virtual me pareceu uma contribuição desses nossos tempos hostis, porque a qualquer momento do dia, ou das madrugadas que sabemos preciosas para nós dois, podemos escapar para além das necessidades, para além do metal que atormenta tanto na falta quanto no excesso, para além das crises numéricas; e encontrar nas palavras, um território onde a subjetividade é a imperatriz.


Lamento sua falta, com saudade antecipada. Detesto me despedir, mesmo que temporariamente dos que amo com zelo e admiração. Sabemos que podemos sobreviver às distâncias, às ausências e aos silêncios; mas para mim, a vida assim é mais triste. E se algum dia tive vergonha da confissão do afeto, do desejo ou mesmo da necessidade de alguém, já há muito esta vergonha me abandonou. Desde o dia que compreendi ser este um dos poucos motivos no qual a tristeza se faz digna.

Quanto a abrir a roda em nossa esquina, acho que vou preferir andar por aí. Da história que se escreveu na Dias Ferreira, esquina com Aristides, preserva-se a memória, mas nunca mais se há de desejar o preço da vida. E nisso, tenho certeza que concordamos.


Em tempos de encerramento de campeonato, meu coração, que você sabe tricolor, respira aliviado, fora da zona de rebaixamento. É pouco. E é tanto! Salpico, na tua galera rubro-negra, talco com água de cheiro e a ti desejo, em especial, além do ar; raça, amor e paixão. É nessa arquibancada mista, aonde sempre nos encontramos, que continuo te desejando. Mande notícias.

Um beijo,

Guilhermina


domingo, 7 de dezembro de 2008

nas esquinas e nos botecos


Guilhermina,


As esquinas e os botecos são, talvez, os espaços mais democráticos num conjunto social. Locais onde, pelo menos na minha mocidade, os seres pensantes, sem tempo pré estabelecido, aglutinavam-se para pensar o país, as artes, as modas e, até mesmo, a possibilidade da troca de confidências. Eram os lugares preferidos do ente literário para o exercício do falso silêncio e da observação. Nas esquinas ele absorvia o próximo personagem a ser criado ou, numa noite de pouca inspiração, num boteco qualquer, deixava a imaginação ir de encontro a algum par de olhos azuis.


Nas esquinas e nos botecos, os amigos reuniam-se sem horário nos lábios e sem cobrança no coração. Aliás, amigo, amigo mesmo, no meu entendimento, não se entrega a exigência do impor. As esquinas e os botecos não tem donos, capatazes ou patrões. As esquinas e os botecos odeiam as ambições profissionais. As esquinas e os botecos são pousadas obrigatórias, construídas pelo imaginário das criaturas atormentadas pelo Divino Ócio, pela contramão da precisão, pela mão única da ira apaixonada, pelas cafetinas da melancolia, pelos sentinelas da vingança, pelas trevas da lua negra, pelos cronistas da alma, pelos vampiros do sangue das canções, pelos ébrios jornalistas, pelos dramaturgos, pelos músicos e pelos poetas. Essas criaturas não vivem encarceradas ao tempo real do planeta. Não usam relógios. Não marcam encontros. Elas se avistam! E por esse simples fato, sentem-se felizes! Alegres pela constatação que os próximos, os comuns, os raros, estão vivos, respirando, sofrendo e comungando ou discordando dos nossos pensamentos e manias. Mas, acima de tudo, vivos!


Ando ausente das esquinas e dos botecos, pelo muito de afazeres que a vida vem me destinando. Esses sim, com hora, data e prazos. Ando ausente das esquinas e dos botecos pela exigência da profissão e, como disse antes, não a levo para o templo do Divino Ócio. Ando ausente das esquinas e dos botecos pelas agruras do cotidiano. A nova ordem econômica é temerosa...


Ataulfo com Guilhermina é uma esquina histórica, assim como, Aristides com Dias Ferreira. Pisaram em suas pedras portuguesas, no final dos anos sessenta, pés que tornar-se-iam clandestinos durante a ditadura militar. Os meninos da Aliança de Libertação Nacional. Eram encontros pela liberdade de ser, de estar, de locomover-se, de permanecer sem exigir do outro mais que o limite da vida. Por isso, Guilhermina, pra ti não desejo mais que a respiração!


Devo me ausentar por um tempo. Faça da nossa esquina e boteco, locais de convergência para outros pensantes.

Sem descortesia,

Ataulfo


sábado, 6 de dezembro de 2008

independência?

Independência nada mais é do que ter poder de escolha.

Não é sinônimo de solidão. É sinônimo de honestidade”.

Martha Medeiros


Independência = poder de escolha = honestidade ≠ solidão (?)


Li e reli a frase tentando identificar o que pensava e sentia a respeito dela. Não satisfeita, deixei sedimentá-la. Medo de precipitar-me? Talvez. No primeiro instante concordava com ela. E no instante seguinte, um incômodo não me permitia simplesmente arquivá-la.


Alguma coisa na ordem dos fatores, na sinonímia talvez, nas referências de igualdade. Vou dar tratos à bola, quem sabe Ataulfo, você vem em meu socorro.


Honestidade diz respeito a um modo de ser. Às vezes me parece até uma escolha em si, antes da escolha. Um terreno, um princípio, não exatamente no sentido moral; antes ainda, num sentido condicional. Honestidade não é, portanto, um de acordo com o que quer que seja, mas uma forma pela qual buscaremos realizar a escolha que for. Diz respeito a muito mais do que querer verdadeiramente algo; diz respeito a poder responder pelo que se quis, tomando para si a parte que lhe cabe dos efeitos do seu ato de escolha. O dicionário, inclusive, remete honestidade à probidade e à compostura. Num primeiro momento isso poderia ser compreendido como uma retidão inflexível e antiquada, mas uma reflexão, só um pouquinho mais ampla, nos indicará não essa rigidez arcaica, mas uma integridade, uma possibilidade de inteireza (probidade) e de composição (compostura). Sim, é preciso compor. Compor com as conseqüências de nossas escolhas anteriores, por exemplo. Especialmente aquelas que envolvem outros.


É verdade que devemos honestidade antes de tudo a nós mesmos. E somos seres mutantes, envolvidos numa dinâmica constante de interesses e condições, que nos exigem uma revisão de escolhas o tempo todo. Cada vez mais estou convencida de que não é o mundo que nos cobra coisa alguma, mas a nossa história. Àquela que escrevemos com nossas escolhas anteriores e os efeitos delas. Se a educação muito se põe como serva da moral e dos bons costumes, ditados pelas leis da tradição e propriedade; o “tenho que ser verdadeiro comigo mesmo” contribui para vivermos em recortes, como se não escrevêssemos um texto inteiro. Se não podemos prometer a ninguém sermos com-preendidos, temos sim o dever de inferirmos sobre causas e efeitos de nossas escolhas. E, longe de deixar de fazê-las, fazê-las com cuidado.


Seguindo, na direção do pensamento que a frase da Martha nos indica, a honestidade se difere ou se distancia da solidão. É? De certo modo, me parece que sim, posto a constância do nosso desejo de encontro com o outro. Mais que isso, desejamos ser para alguém. E, mesmo convencidos pelo poeta de que esse encontro só poderá ser eterno (se honesto) enquanto dure, dá um trabalho danado e uma dor imensa os sonetos de separação. Mas, por outro lado, quando não somos sós nas escolhas? Como se pode escolher senão pela intrínseca condição de fazê-lo só? Qualquer tentativa de escolher acompanhado ou determina o contorno da tirania ou a vontade (às vezes irresistível) de atribuir ao outro a responsabilidade por essa escolha...


No final das contas, então, não é somente sozinhos que podemos alcançar a independência de escolher? Honestidade e solidão não são condições pares da escolha?


Mais um pouco: Independência! Ou Morte? Não consigo supor independência sem autonomia e sem liberdade. Não somos, e ninguém é independente e livre. Somos, na melhor das hipóteses, bons negociadores na eterna cadeia de interdependência que a vida nos determina como um fato. Nossa odisséia nasce na necessidade do olhar, o mais poderoso de todos os grilhões. Sem o olhar não somos coisa alguma e não suportamos isso. Nascemos ao mesmo tempo ávidos e avessos ao olhar que nos delineia numa imagem, à qual ora queremos corresponder, ora fugir em disparada, como se longe dela pudéssemos ser esse “outro livre”. Resumindo, ou somos inteiramente dependentes ou damos vida à nossa própria escultura para além de criatura, visitarmos, mesmo assim ocasionalmente, a posição de criador.


Desculpe-me, Martha, mas a minha frase seria: Sós e honestos, a interdependência nada mais é do que podermos fazer e suportar nossas escolhas

(sós + honestos = interdependência = fazer + suportar escolhas).


Beijo,

Guilhermina

quarta-feira, 3 de dezembro de 2008

carta ao Anônimo

Prezado Anônimo,


Você não imagina o prazer de encontrar suas palavras. É muito bom saber que falo a mais alguém além dos “nobres” que passam por esta esquina. Dá-me a sensação de romper divisas, revigorando em mim o prazer de compartilhar este vício pelo pensamento.


Na verdade, hoje mesmo, uma das minhas filhas me disse que minha compulsão não é por alguma coisa, mas pela própria compulsão. Acho que é verdade, às vezes tudo só me parece encontrar sentido no muito. Muito qualquer coisa, desde que muito. Confesso que esse traço que me constitui ora me assusta, numa tangente qualquer do enlouquecimento; ora me encanta, numa mediatriz da entrega e do apaixonamento. Mas tenho um defeito a mais, posso muito pouco (que ironia!) sozinha. Por isso mesmo, até um blog, para ser meu, propus em parceria. Isso me irrita. Esperneio, ralho, blasfemo, brigo comigo mesma, exigindo-me aprender a caminhar só, mas ando um ou dois quarteirões e quando dou por mim, já estou novamente estacionada, à espera de algum outro que me acompanhe nas andanças e destinos. Por tudo isso, o recente silêncio de Ataulfo, com quem combinei me encontrar nesta esquina, um tanto me cala também. Dialogar não é o mesmo que ouvir somente ecos, certo?


Tuas palavras, no entanto, me convocaram. Fizeram-me lembrar de uma frase que ouvi faz alguns anos, acho que do Afonso Romano de Santanna – quem espera coagula no tempo... Assim, de repente, acho que preciso aprender a caminhar com estranhos, anônimos, estrangeiros. Entabular, em línguas diferentes propostas distintas. Aprender novas semânticas, arriscar novas idéias.


Não. Não é a primeira vez que ouso propor-me a isso. Sabe onde reluto? Sempre na sensação de que não quero ser eu quem abandonou. Mais um muito de que preciso. O da insistência.


Como você vê, sou “neuroticamente leal”. Se isso é bom? Não sei. Cobra seu preço. Mas o que vale realmente na vida que não tenha um alto custo? De todo modo, podemos caminhar um pouco além, até algumas esquinas adiante. Revelarmo-nos mais, até que, quem sabe, façamos diferença um para o outro, além dos títulos, além das convenções, além das distâncias. É o grau de intimidade e permanência que difere as relações sociais das pessoais, você não acha? São estas últimas as que realmente me interessam.


É exatamente por isso, pela diferença que Ataulfo faz pra mim, que ainda lhe dou crédito, que ainda acredito que ele estará sentado aqui no Jobi, amanhã ou depois, para me contar alguma história que explique sua ausência e sua descortesia.


Então, vamos? Que tal começar me dizendo seu nome? Ou devo continuar a lhe chamar de Anônimo? Quanto a mim, você já sabe: Guilhermina. Rainha, só para os mais ímtimos.





sexta-feira, 28 de novembro de 2008

dá o play


Para se gravar uma música, primeiro ela é escrita num dialeto de claves, mínimas e semínimas, andamento e intervalos, para o qual é preciso alfabetização e capacidade interpretativa. Dito desta forma, a música parece antes uma linguagem, mas os literatos, sejam amantes do erudito ou do popular, juram que tudo aquilo é matemática.


Depois, ela entra em estúdio – um oráculo de acordes, compassos e respiração. A partir daí, um canal ou pista é destinado a cada instrumento. A mágica então começa a acontecer: mãos, dedos, boca, cordas, músculos e coração entram em cena e operam o milagre de transformar a escrita em discurso e este sim, universal. Um por vez, cada mago e seu instrumento depositam sua contribuição. Primeiro a base; depois os complementos; por fim, a voz. Cada um em seu canal.


Ao final, um segundo maestro, este da tecnologia, entra em cena. É dele a responsabilidade de misturar e equalizar cada participação. Por suas mãos, todas as pistas se encontrarão numa só praça central. E sua mestria está em fazer isso sem perder a nitidez das partes e ao mesmo tempo, fazê-las soar como uma só obra.


Por isso mesmo, é um acinte quando não nos chega, ouvintes, o nome de cada mago presente àquela cerimônia de encontro e de deslumbramento. O triste é que cada vez mais os veículos, que deveriam ser de divulgação e difusão, nos trazem as obras e nos assaltam os autores. O processo de globalização tem por princípio e ferramenta esse apagamento de identidades e autorias, o que obviamente não se limita a essa seara, musical, mas a todas onde o homem existe.


Perdoe-me extrapolar os limites da presunção para tomar cada um de nós como uma obra, a exemplo da música e da arte. Também somos constituídos a partir de uma autoria anterior. Também somos compostos por artesãos do encontro. Daí decorre que cada um nos lê e nos interpreta a partir de suas competências, acuidade e destreza humana. De qualquer forma, é na arte do encontro que somos continuamente re-tocados. E cada um desses com quem dia-logamos imprime em nós sua assinatura. E vice-versa. A cada um, portanto, devemos re-conhecimento, sob pena de, se assim não o fizermos, nunca alcançarmos muito sobre nós mesmos.


Entretanto, cabe a nós aquele último estágio da criação. Mixar e equalizar. O retoque final que nos transforma em uma maçaroca disforme ou numa obra de pulsação e ritmo que opera sobre os sentidos alheios. Equalizar, no entanto, não é tarefa das mais fáceis. Qual o volume ideal, por exemplo, para que a tolerância não se transforme em complacência ou conivência? Quanto de grave e quanto de agudo são necessários à agressividade para que a indignação ganhe força combativa? Em que ambiente a verdade é o ponto médio, único a partir do qual qualquer acorde é a diferença? Quais plug-ins darão à dúvida o efeito de desconstrução do pré-conceito e não de rotatória da covardia ao ato?


Se é uma vantagem, meu amigo, nos constituirmos como obra aberta, é também imperativo que fechemos os movimentos, solemos as árias, finalizemos as faixas ou seremos somente um rascunho, uma pretensão, uma distorção.


Tenho sentido sua falta. Por que escasseiam tanto suas respostas e indagações?

Beijo,

Guilhermina

domingo, 23 de novembro de 2008

sem "ismos", por favor

Ataulfo, olá;


Quero conversar com você sobre dois assuntos, que em princípio, não se conjugam. Vamos ao primeiro e, se der tempo, falamos do outro. Se não, fica para outro dia.


Você lembra, quando há algum tempo, acompanhamos a decisão de que fosse revista a palavra homossexualismo? O condutor da história era o uso do sufixo “ismo” que designa doença, no campo da medicina. É bom saber que desde 1985, o Conselho Federal de Medicina não cataloga a homossexualidade como doença. Entretanto, se a academia a oficializou há mais de duas décadas como um “modo de ser” (caracterizado na língua pelo sufixo “dade”), a sociedade tem levado mais tempo para tomar o conhecimento por verdade. Coisa que só se explica quando passeamos pela via que vai da ignorância ao medíocre. Fato é que, só mais recentemente, a luta contra a homofobia vem exigindo o uso correto do termo.


Desde então, o sufixo “ismo” é um desafio pra mim. Eu sempre disse às minhas filhas do meu horror e da minha incapacidade de negociar com drogas, ameaça à integridade física e “lavagem cerebral”. Nesta última categoria, eu incluía as seitas, os guetos ou qualquer organização em que para fazermos parte, temos que abandonar nossa capacidade crítica e nossa possibilidade de argumentação.


Adoro o singular, exatamente porque lhe cabe o plural. Não gosto, entretanto de coletivos, onde todos viram um só. O sufixo “ismo” encosta nesse território. Pensa comigo: Marx foi um pensador revolucionário, o Marxismo, em seu nome, coitado, devastou a individualidade e prometeu uma igualdade que nunca se cumpriu. Por sua vez, capital é uma palavra que nos remete a recursos; enquanto o Capitalismo logo se fez selvagem e brutal. Mudemos de campo. Há um Deus (ou muitos) que é (são) concebido(s) sempre em harmonia com o Universo e em prol da humanidade. Entretanto, quando o homem constrói seus templos e reúne-se em torno de um ou outro conjunto de dogmas, fundam doutrinas que não se suportam. Judaísmo, Catolicismo, Islamismo, Protestantismo, Espiritismo... E a partir daí, em nome de Deus, são capazes de qualquer coisa. Deus ganha contornos de propriedade e como tal pode ser vendido, alugado, disputado, leiloado e outras coisas mais. Mas religião é coisa muito complicada, então mudemos novamente de seara. Ego, por exemplo, nos remete a uma “consciência do eu”, uma auto-imagem, um contorno de cada sujeito considerando sua negociação entre suas pulsões e os impedimentos e vias para realizá-las. Egoísmo, entretanto, aponta justamente para a falência desta condição de negociar. O jornalista Públio José já discorreu sobre isso.


Como você vê, meu amigo, parece que a medicina tem razão. O sufixo “ismo” encerra um território de adoecimento. Lá onde deveria ser o espaço de encontros por identificação e afinidade torna-se, na verdade, um sumidouro do sujeito e do que lhe é próprio: a individualidade, a criatividade, a especificidade e outros “modos de ser”, que não por acaso, caracterizam o singular.


Assim, me parece que onde um “ismo” se inscreve acontece uma corrupção da possibilidade do encontro. Em seu lugar nasce uma doutrina e com ela uma liderança que se apropria indevidamente das regras, transformando-as perversamente em dogmas. A partir daí, essas lideranças contabilizam lucros enquanto seus seguidores pagam dízimos em troca de promessas e esperanças.


Agora me diga uma coisa: adoro o verbo empreender, mas Empreendorismo?! Que doutrina é essa?

Vou-me embora. Depois te conto o resto.

Beijo,

Guilhermina

terça-feira, 18 de novembro de 2008

superfície adversa

para Guilhermina

Passe um pano molhado
No mofo das horas,
No vidro do velho relógio
Da sala de visitas

Passe um creme nas rugas do rosto
De olheiras profundas
E nos lábios sentidos
Um batom encarnado

Passe a mão no diário da vida
E sem cerimônia
Apague sua alma da letra C
E uma ou outra passagem

Não há mais nada a dizer
Mas quem sabe você, cedo ou tarde,
Virá compreender, quando a raiva ceder
E o orgulho deixar,

Que apenas
Feriu sua mão
Na superfície adversa
Desses tempos.


Amiga,
Amar não é para o estro de qualquer ser na superfície adversa desses tempos.
Beijos,
Ataulfo

sábado, 15 de novembro de 2008

em grama


Andei muda nesses dias. Cada vez que mastigava as palavras, um gosto ácido enchia minha boca de saliva. Há muito tempo, Ataulfo, a raiva não me contaminava as papilas desta maneira.


Não sei onde este sentimento adormece. Não sei qual o órgão que ele escolhe como leito, mas com certeza esconde-se em alguma cápsula e foi assim que aconteceu por anos.


Dizem que o inconsciente registra os afetos por quantum de energia. Fiquei imaginando como. 100g de intensidade – ternura. 347g – indignação, 1420g – amor. 1733g – paixão. Assim? Três gramas a mais ou a menos; de qualquer forma ali, pertinho – raiva. Isso mesmo. Paixão e raiva só podem ser vizinhas geminadas. Estrategicamente posicionados no limiar da “zona de perigo”: aquela que guarda as emoções que transbordam.


Isso tudo, meu caro, para te dizer que a porrada vinda em 2000 me deixou em coma. Funções vitais preservadas, centro nervoso adormecido.


Rita sempre me disse que determinadas cicatrizes se processam de dentro para fora. Não adiantam os decretos. Não se sustentam. Não resolvem os paliativos, que tratam os sintomas sem curar a lesão. As dores da alma e as feridas narcísicas fazem parte desta categoria. Mais de meia década depois, recém saída do coma, tive que concordar com Rita.


Durante aquele estado, sonhei (ou delirei?) que seria desperta do sono mortífero por um beijo. Um milagre que parece, só é disponível às princesas aurora. Não foi assim.


Amor-paixão e narcisismo se vinculam aos seus objetos por posse, fazendo deles sentido e certeza. Quando atingidos por lesão grave, portanto, desorientam e paralisam. Para ser mais precisa, essas lesões nos levam ao território do sem-sentido, lá onde a vida não tem nenhum valor. Nesse porão, por sua vez, conspiram a raiva, a ira e o ódio – três irmãos, três sentinelas do corredor da morte.


Responda-me com honestidade. Pode haver combinação mais explosiva: o sem-sentido e os sargentos da destruição? Foi preciso acorrentá-los, Ataulfo. Sob vigilância contínua e reforçada.


Se Deus existe, ele viu. Se não, tenho algumas poucas testemunhas, que não desistiram de mim, mesmo moribunda. Elas me contam que com as poucas forças que sobraram, lutei. Com a ferida aberta, fiz de mim mesma a sentinela do porão, deixando a mingua a paixão e os três irmãos.


Tão só, como sempre estive em minha Causa” foi minha estrela-guia e, no escuro da masmorra, troquei de pele.


Recentemente, em mais uma audiência visando a comutação da pena, a paixão e a raiva conseguiram clemência. O ódio e a ira, não. Guardiã de tantos anos, fui designada a acompanhá-las rumo à alforria. Confesso que venho experimentando o medo, mas também uma excitação profunda, latente e constante pela emoção de voltar à vida. Eu amo, Ataulfo! E sinto raiva!


É bom te encontrar. É bom te ver. Mas me diga uma coisa: e você? Onde mora no teu silêncio?


Um beijo,

Guilhermina

terça-feira, 4 de novembro de 2008

alternativa

Recentemente, escutei o argumento de que “quando as coisas começam a dar errado, devemos entender que o caminho escolhido foi equivocado e estamos insistindo por pura teimosia”. Um pouco depois, outra pessoa me alertou para o fato de que “quando queremos alguma coisa, é preciso não desanimar diante dos obstáculos, mas encará-los como os desafios que precisamos vencer na conquista do que desejamos”.


Eram duas certezas. E como um interlocutor não sabia do outro, não pretendiam o confronto nem o antagonismo. Cada um, diante da mesma circunstância, defendia sua ótica. Só isso.


Invejei os dois. Gostaria realmente de fazer parte de um dos times. Gostaria de possuir a mesma convicção. Mas, na brincadeira do isso ou aquilo, em mim só havia a dúvida. Quantas vezes devo ter desistido antes da hora? Quantas vezes teimei, pensando que persistia?


E não pense você, meu caríssimo Ataulfo, que estou preocupada com o julgamento de terceiros. Não. Quanto a isso, já entendi que aos olhos alheios o que me define persistente ou teimoso é o resultado – vitorioso ou derrotado, nesta ordem.


O que me tira o sono é onde tropeço na minha própria indecisão. Como reconhecer os limites da minha insistência sem esbarrar na burrice; na cegueira, arrogância ou onipotência? E ao contrário, como saber que um impedimento nada mais é que um quebra-cabeça, uma charada ou uma rodada de pôquer, onde para continuar no jogo é preciso pagar pra ver?


Há coisas que nem a sabedoria popular sabe responder. Há o time do “querer é poder” e há seu adversário – “não se pode ter tudo que se quer”. Em campo, ora um ganha, ora é o outro que faz história.


Muito nova aprendi que a única coisa que nos leva mais além é o desejo. Tomei-lhe por asas e segui. A lição seguinte unia um desejo à Lei para fazer nascer o traçado de realização. Acreditei e construí minha aliança. Um dia, tive que aprender que pode ser necessário andar na contramão do desejo. Questão de sobrevivência. Acho que foi a lição mais difícil, na qual fui reprovada inúmeras vezes até conseguir. Mas e agora? E não me venha com aquela de que o limite é o tamanho do cacife que temos pra pagar. Já tomei muito emprestado e devolvi. Com juros e correções. Também já perdi para ganhar. Já me rendi em batalhas e ganhei a guerra. Já paguei mais caro do que devia. Já pechinchei e levei, assim como tomei gato por lebre. De todas as experiências, respondo sem pestanejar: a pior é perder por W.O. Mas falta alguma coisa, Ataulfo; falta alguma coisa...


Um beijo,

Guilhermina



quinta-feira, 30 de outubro de 2008

des-envolvimento

Caro Ataulfo,

Você some, viaja, sem deixar nem um recado na caixa postal... É para isso que elas servem, sabia? Volta (pelo menos foi em tempo de votar) e já vem me dando porrada? E depois, eu que sou passional...


Olha, Ataulfo, num desses dias, durante a tua última ausência, escutei uma história que começou com a premissa “para que haja desenvolvimento é preciso retirar o envolvimento”. De imediato me veio a imagem uterina, de onde precisamos sair para continuarmos crescendo. E por analogia... toda e qualquer redoma ou acomodação obedeceria ao mesmo princípio.

Como você vê, de início, concordei com o interlocutor. Mas foi só. Ele enveredou por um discurso sobre pragmatismo e distanciamento como condições necessárias às boas decisões. E quanto mais o cara falava mais eu me coçava. Reação alérgica, eu acho. Construímos equívocos colossais a partir de premissas razoáveis. Eu pensando que é preciso o incômodo, a provocação para que cresçamos e o cara jogando no time do meu pai, que sempre disse que temos a cabeça acima do coração para pensarmos mais do que sentimos (coisa que ele mesmo não faz, ainda bem).

Há uma coligação pragmatismo-marketing, não há? Adoram frases de efeito; amam números, em especial os relativos e percentuais; veneram citações e títulos; odeiam subjetividade, entrelinhas e interpretações e nos últimos tempos, acreditam piamente “estarem fazendo a diferença” assim como acham que, a próxima revisão ortográfica deveria inserir ao nosso alfabeto o $ como letra.

O que sei, Ataulfo, é que me enfiei nos meus botões enquanto o cara continuava falando para o vazio. Segui percorrendo o labirinto que ele, sem saber, havia me proposto. Eu me indagava, àquela altura, sobre o momento seguinte ao da saída dos invólucros de proteção, impedimentos ao desenvolvimento, quando o desamparo nos toma como uma perspectiva. Deve ter sido diante do vão que alguém construiu a ponte; ou diante do nada que se fez a bússola, não? Ou seja, é preciso inventar? E lançar-se ao seu invento, com tal paixão que da ilusão se faça ato? Então que bicho é esse que nos tira do lugar da presa e nos constitui tecedeira? Que bicho é esse que pulsa, pulsa, pulsa empurrando o corpo a um ritmo próprio e único? Que pulsa-(a)ção é essa que toca os tambores convocando o bando? E segue, na frente, em frente.

No último domingo, 2º turno nas eleições para prefeito, um sorriso ou discreto movimento da cabeça era um cumprimento entre muitos estranhos, todos nós vestidos de verde. Silenciosa conspiração pró-Gabeira. Quase deu, mas os pragmáticos-marketeiros ainda chegaram na frente. Os números venceram as letras ainda desta vez. Na noite do mesmo domingo, anunciada a vitória de Paes, o Rio ficou mais triste. Por isso mesmo, quando seu poema substituiu o jornal finalmente entendi que se temos a cabeça acima do coração é para que possamos pensar a emoção e desta forma, e definitivamente, fazer do luto, ação-manifesta. Conte comigo.



Um beijo,
Guilhermina

quarta-feira, 29 de outubro de 2008

manchetes cariocas de pouco valor poético


Há um corpo decomposto na esquina

Sob o olhar entediado do verão

“Farmacêutico ingeriu estricnina”.

Toneleros, confluência com Barão

Há um pênis extirpado na latrina

De um quarto do Motel “Céu de Neon”.

A perícia, pela arcada da assassina,

Diz que a dona é da zona do Leblon.


Vende, o filho de um juiz, a cocaína.

Quando preso diz-se só consumidor.

Quando solto, vocifera que a heroína

É a polícia, sob o sol do Arpoador.


Há uma festa que é regada à adrenalina

Onde o êxtase da morte é adolescente.

Não sabemos mais se o bonde é da colina

Da Rocinha ou da Marquês de São Vicente.


Há um avô que é pai do neto.Tão menina

É a mãe, que é filha e amante do pavor.

Escondeu-se a sete chaves, senda e sina,

Descobriu-se na eleição pra senador.


Há um crime no Rebouças que alucina,

Um seqüestro que horroriza e atordoa.

Um pingüim é recolhido na Marina

E um bebê é abandonado na Lagoa.


Uma jovem, só por não ser feminina,

Foi surrada e estuprada hoje cedo.

São nazistas, são “carecas”, são rapinas,

Que invejam toda a Farme de Amoedo.


Tantas fraudes e o estado se arruína.

A cidade é uma anarquia, um pardieiro,

Volta aos Goytagazes, tribo que abomina

Todo o povo do meu Rio de Janeiro.


Município, outro prefeito lhe domina,

Queira Deus que não lhe cave a palmo, a cova

A elite carioca é albina,

Quer, no breu das trevas, a Cidade Nova.


Desprezávamos a alma suburbana,

Além túnel residia a insanidade,

Não chorávamos seus mortos e seus dramas

Como o pobre pode ter felicidade?


Hoje, enfim fundiu-se Urca e Brás de Pina,

E o Leblon não deve nada à Piedade.

Quando espremo as manchetes matutinas

Choram as mães da Zona Sul dessa cidade!



Ataulfo