sábado, 15 de novembro de 2008

em grama


Andei muda nesses dias. Cada vez que mastigava as palavras, um gosto ácido enchia minha boca de saliva. Há muito tempo, Ataulfo, a raiva não me contaminava as papilas desta maneira.


Não sei onde este sentimento adormece. Não sei qual o órgão que ele escolhe como leito, mas com certeza esconde-se em alguma cápsula e foi assim que aconteceu por anos.


Dizem que o inconsciente registra os afetos por quantum de energia. Fiquei imaginando como. 100g de intensidade – ternura. 347g – indignação, 1420g – amor. 1733g – paixão. Assim? Três gramas a mais ou a menos; de qualquer forma ali, pertinho – raiva. Isso mesmo. Paixão e raiva só podem ser vizinhas geminadas. Estrategicamente posicionados no limiar da “zona de perigo”: aquela que guarda as emoções que transbordam.


Isso tudo, meu caro, para te dizer que a porrada vinda em 2000 me deixou em coma. Funções vitais preservadas, centro nervoso adormecido.


Rita sempre me disse que determinadas cicatrizes se processam de dentro para fora. Não adiantam os decretos. Não se sustentam. Não resolvem os paliativos, que tratam os sintomas sem curar a lesão. As dores da alma e as feridas narcísicas fazem parte desta categoria. Mais de meia década depois, recém saída do coma, tive que concordar com Rita.


Durante aquele estado, sonhei (ou delirei?) que seria desperta do sono mortífero por um beijo. Um milagre que parece, só é disponível às princesas aurora. Não foi assim.


Amor-paixão e narcisismo se vinculam aos seus objetos por posse, fazendo deles sentido e certeza. Quando atingidos por lesão grave, portanto, desorientam e paralisam. Para ser mais precisa, essas lesões nos levam ao território do sem-sentido, lá onde a vida não tem nenhum valor. Nesse porão, por sua vez, conspiram a raiva, a ira e o ódio – três irmãos, três sentinelas do corredor da morte.


Responda-me com honestidade. Pode haver combinação mais explosiva: o sem-sentido e os sargentos da destruição? Foi preciso acorrentá-los, Ataulfo. Sob vigilância contínua e reforçada.


Se Deus existe, ele viu. Se não, tenho algumas poucas testemunhas, que não desistiram de mim, mesmo moribunda. Elas me contam que com as poucas forças que sobraram, lutei. Com a ferida aberta, fiz de mim mesma a sentinela do porão, deixando a mingua a paixão e os três irmãos.


Tão só, como sempre estive em minha Causa” foi minha estrela-guia e, no escuro da masmorra, troquei de pele.


Recentemente, em mais uma audiência visando a comutação da pena, a paixão e a raiva conseguiram clemência. O ódio e a ira, não. Guardiã de tantos anos, fui designada a acompanhá-las rumo à alforria. Confesso que venho experimentando o medo, mas também uma excitação profunda, latente e constante pela emoção de voltar à vida. Eu amo, Ataulfo! E sinto raiva!


É bom te encontrar. É bom te ver. Mas me diga uma coisa: e você? Onde mora no teu silêncio?


Um beijo,

Guilhermina

2 comentários:

Visconde de Albuquerque disse...

minha estimadíssima rainha,
conheço-te a singular têmpera.
venero os que não conseguem enxergar gratuidade no viver.
e a vida, como não nos deixa esquecer a grande filósofa greco-mineira ana caroliniuns, a vida "é isso aí".
ou, como diria seu colega de academia tim maiuns, "tudo é tudo e nada é nada".
não necessariamente nesta ordem.
muitos pensam estar protegidos caminhando na superfície.
debalde.
como se sabe, chega uma hora que chega uma hora.
tu, não.
tu desde sempre vens te antecipando.
teu mergulho no real profundo e no vago infinito é uma das coisas mais lindas que esse teu amigo já observou.
e olha que olhos de sagitarianos gostam de observar!
nosso encontro foi uma dessas felicidades que só a arquitetura do tempo sabe engendrar.
folgo em encontrar aqui mais um forum para celebrações contigo.
indago se não viste o primeiro comentário que postei aqui.
a propósito, sugeri um perfil de ataulfo à editora de uma das publicações às quais colaboro.
com a oportuna ressalva de que, do jeito que nosso imperador gosta de confabular e eu, de escrever, periga a entrevista tomar uma edição inteira da revista cultural.
por falar nisso, esta semana fui ter com o comendador ed motta.
ah, as delícias dessa minha profissão...
tu bem irias apreciar estar ali, naquela tarde chuvosa do jardim botânico, a saborear inteligências.
na seqüência, fui sorver um espumante na companhia da referida editora (que, para espanto meu, conhece a ti graças ao príncipe felipe), no bistrô da ponte.
a vista da lagoa no entardecer enevoado, as palmeiras soberanas do jb espetando o céu...
realmente, a vida é isso aí.
e é bela.
escandalosamente bela.
recomendações ao imperador ataulfo e à sua imperturbável senhora.
ósculos carinhosos
do teu
visconde de albuquerque

Nelida Capela disse...

Rainha Guilhermina:

Pensativa nas suas gramas de sentimentos emergentes. Nesta semana, para restaurar em minha alma a corrosão dos venenos humanos, pratiquei, diariamente, o mantra Om Mani Padme Hum, de origem indiana e muito utilizado pelos tibetanos.É o mantra de seis sílabas do Bodisatva da compaixão: Avalokiteshvara. É o mantra mais entoado pelos budistas tibetanos. Suas sílabas são fonte para todas as qualidades e para a mais profunda alegria. Cada uma das seis sílabas elimina venenos da consciência humana. Significa: Recebemos a jóia da consciência divina no coração do lótus, no centro do nosso chakra da coroa.

Om fecha a porta para o sofrimento de renascer no reino dos deuses. O sofrimento do reino dos deuses surge da previsão da própria queda do reino dos deuses [isto é, de morrerem e renascerem em reinos inferiores]. Este sofrimento vem do orgulho. Ma fecha a porta para o sofrimento de renascer no reino dos deuses guerreiros (sânsc. asuras). O sofrimento dos asuras é a briga constante. Este sofrimento vem da inveja. Ni fecha a porta para o sofrimento de renascer no reino humano. O sofrimento dos humanos é o nascimento, a doença, a velhice e a morte. Este sofrimento vem do desejo. Pad fecha a porta para o sofrimento de renascer no reino animal. O sofrimento dos animais é o da estupidez, da rapina de um sobre o outro, de ser morto pelos homens para obterem carne, peles etc., e de ser morto pelas feras por dever. Este sofrimento vem da ignorância. Me fecha a porta para o sofrimento de renascer no reino dos fantasmas famintos (sânsc. pretas). O sofrimento dos fantasmas famintos é o da fome e o da sede. Este sofrimento vem da ganância. Hum fecha a porta para o sofrimento de renascer no reino do inferno. O sofrimento dos infernos é o calor e o frio. Este sofrimento vem da raiva ou ódio. Om Mani Padme Hum.

Paz,
Lector in Fabula