sexta-feira, 28 de novembro de 2008

dá o play


Para se gravar uma música, primeiro ela é escrita num dialeto de claves, mínimas e semínimas, andamento e intervalos, para o qual é preciso alfabetização e capacidade interpretativa. Dito desta forma, a música parece antes uma linguagem, mas os literatos, sejam amantes do erudito ou do popular, juram que tudo aquilo é matemática.


Depois, ela entra em estúdio – um oráculo de acordes, compassos e respiração. A partir daí, um canal ou pista é destinado a cada instrumento. A mágica então começa a acontecer: mãos, dedos, boca, cordas, músculos e coração entram em cena e operam o milagre de transformar a escrita em discurso e este sim, universal. Um por vez, cada mago e seu instrumento depositam sua contribuição. Primeiro a base; depois os complementos; por fim, a voz. Cada um em seu canal.


Ao final, um segundo maestro, este da tecnologia, entra em cena. É dele a responsabilidade de misturar e equalizar cada participação. Por suas mãos, todas as pistas se encontrarão numa só praça central. E sua mestria está em fazer isso sem perder a nitidez das partes e ao mesmo tempo, fazê-las soar como uma só obra.


Por isso mesmo, é um acinte quando não nos chega, ouvintes, o nome de cada mago presente àquela cerimônia de encontro e de deslumbramento. O triste é que cada vez mais os veículos, que deveriam ser de divulgação e difusão, nos trazem as obras e nos assaltam os autores. O processo de globalização tem por princípio e ferramenta esse apagamento de identidades e autorias, o que obviamente não se limita a essa seara, musical, mas a todas onde o homem existe.


Perdoe-me extrapolar os limites da presunção para tomar cada um de nós como uma obra, a exemplo da música e da arte. Também somos constituídos a partir de uma autoria anterior. Também somos compostos por artesãos do encontro. Daí decorre que cada um nos lê e nos interpreta a partir de suas competências, acuidade e destreza humana. De qualquer forma, é na arte do encontro que somos continuamente re-tocados. E cada um desses com quem dia-logamos imprime em nós sua assinatura. E vice-versa. A cada um, portanto, devemos re-conhecimento, sob pena de, se assim não o fizermos, nunca alcançarmos muito sobre nós mesmos.


Entretanto, cabe a nós aquele último estágio da criação. Mixar e equalizar. O retoque final que nos transforma em uma maçaroca disforme ou numa obra de pulsação e ritmo que opera sobre os sentidos alheios. Equalizar, no entanto, não é tarefa das mais fáceis. Qual o volume ideal, por exemplo, para que a tolerância não se transforme em complacência ou conivência? Quanto de grave e quanto de agudo são necessários à agressividade para que a indignação ganhe força combativa? Em que ambiente a verdade é o ponto médio, único a partir do qual qualquer acorde é a diferença? Quais plug-ins darão à dúvida o efeito de desconstrução do pré-conceito e não de rotatória da covardia ao ato?


Se é uma vantagem, meu amigo, nos constituirmos como obra aberta, é também imperativo que fechemos os movimentos, solemos as árias, finalizemos as faixas ou seremos somente um rascunho, uma pretensão, uma distorção.


Tenho sentido sua falta. Por que escasseiam tanto suas respostas e indagações?

Beijo,

Guilhermina

3 comentários:

Nelida Capela disse...

Guilhermina: o mundo padece de tantas doenças, uma delas de não dar o crédito, seja na música, na literatura, na foto, etc. A democratização é uma desculpa para a usurpação. A inclusão, um direito de todos, vem como um empurrão, um "chega pra lá" em muitos casos. É assim? Sem mais nem menos? Eu hein, vamos dar crédito, sim. Vamos cobrar pelo nosso trabalho, pois só quem trabalha de graça é relógio, e mesmo assim, alguém tem que dar corda.
Beijos para vocês, Guilhermina e Ataulfo.

Ps: Já leram o Zygmunt Baumann - o livro que fala do ser humano como mercadoria? Assim caminha boa parte da humanidade que vive hoje.

Visconde de Albuquerque disse...

Prezada Nélida,
Só nos resta elevar nossos pensamentos à parte da humanidade que não vive hoje e que, por conseguinte, também não caminha mais.
Com meus respeitos,
Albuquerque

Anônimo disse...

Guilhermina,

Suas palavras se tornaram minhas companheiras, sinto sua falta. Por onde andas?

bjs.