quinta-feira, 16 de outubro de 2008

um número

Quase todos os dias, meu caro Ataulfo, quando termino de me arrumar para vir ao seu encontro e me deparo com Guilhermina fitando-me no espelho, ela parece me encarar cobrando uma explicação sobre quem é ela e quem sou eu. Às vezes, digo-lhe que é meu personagem; às vezes, que é ela a minha autora. Às vezes, enquanto eu choro, ela ri; outras, no entanto, ela chora comigo e quase sempre se eu calo; ela fala, me convoca, me provoca. Venho até lhe agradecendo a redenção da palavra, roubando-lhe assim a alteridade.


Para a minha surpresa, no nosso último encontro com você foi ela quem se calou. Ensimesmou. Sussurrou quase sem som algum durante todo o dia de ontem “onadacomomatériaprima... o nada...” Hoje fez uma catarse. Começou logo pela manhã chamando dinheiro de merda. E eu tentando alertá-la de que dinheiro é ouro! Ela abanava o ar, praguejava, mandou eu enfiar o dinheiro naquele lugar e chispando, continuou em tom de ameaça, me avisando que “nem tudo que reluz é ouro” e que, onde o diabo sobra, também sobram egoísmo e arrogância e onde ele falta, fabricam-se otários que se vendem por qualquer trocado. Depois, ainda irreconhecível, colocou a Imagem na berlinda. Gritava que, atualmente, ninguém é, no presente do indicativo. Todo mundo parece. Ela espumava, ofegante, os olhos congestionados e eu, confesso, estava começando a ficar nervosa. “Parece o quê, Guilhermina?” Arrisquei perguntar.


“Cada um parece o que bem lhe interessa. Um camaleão.”


“Mas isso não é inteligente?” Arrisquei de novo.


“Inteligente?! Hipocrisia e oportunismo. Isso é que é!”


Sem fazer intervalo, ela emendou que eles iam conseguir nos transformar em um número. RG, CPF, IP, IDs, telefone, tudo, absolutamente tudo inscrito sob um único número. Sem nome, sem sobrenome, somente um serial num chip, implantado sob a pele. Uma reedição da marcação do gado no pasto e depois dos judeus, quando um insano os colocou, sob os olhos do mundo, na fila do gás. Mais que dinheiro, é assim que se roubam almas.


Não agüentei mais e dei um grito. Ao mesmo tempo um basta e uma oração. Se há um Deus, que nos livre! Então Guilhermina despencou no sofá, aos prantos. Disse que você tinha razão. Era hora do nada como matéria-prima. E que ela tinha medo. Disse que o tempo era seu maior algoz. O tempo que pode curar, mas que também oxida; como nos disse Dona Flores. O tempo dos anos que pesam as pernas e os ombros enquanto desenha linhas no rosto e nas mãos. O tempo que determina um calendário de faturas a pagar e urge em compromissos. O tempo que só anda numa direção. Sem retorno, revisão ou retrocesso. Implacável em sua permanência. Uma contínua e infinita ampulheta que alimenta sua duna esvaziando o espaço-ato de cada existência. Um tempo que se acumula em cada um por sucção vital.


Guilhermina dizia-se atrasada, irremediavelmente atrasada. Precisava seguir seu conselho e encarar o nada até que nele um desejo desenhasse um horizonte, mas o que fazer com o medo de que seu algoz se antecipasse, numa condenação definitiva, que lhe roubaria a sobrevivência?

Tomei-lhe nos braços desejando ser-lhe útero, mas ela me afastou. Pela primeira vez no dia, a delicadeza lhe visitou rascunhando um sorriso e com voz pausada, mas firme, ela me disse: “no nada só é possível entrarmos sós”.


Um beijo,

Guilhermina, a outra.

2 comentários:

Cris Medeiros disse...

Obrigada pela visita! Beijocas

banny.banny disse...

"Às vezes, digo-lhe que é meu personagem; às vezes, que é ela a minha autora. Às vezes, enquanto eu choro, ela ri; outras, no entanto, ela chora comigo e quase sempre se eu calo; ela fala, me convoca, me provoca". pra mim foi a melhor parte.

esse lado tecnologico do chip me agradou deveras.
arrasô mona.

=)