sexta-feira, 10 de outubro de 2008

curto-circuito

Ataulfo, meu caro Ataulfo,


Socorro! Não tenho idade para ser senil então acho que estou ficando maluca. Dei pra ter medo da sombra e tenho a impressão de que dormi sã e acordei assim. Logo eu, que estudei tanto para cuidar de cabeças alheias não sei direito em que sinapse o curto-circuito aconteceu. Ou seria melhor dizer em que circuito a sinapse não aconteceu? Por favor, e vou te pedir baixinho, que essas coisas só se falam para os mais íntimos: desenha o mundo pra mim que eu não mais o compreendo.


Cresci brincado de polícia e ladrão. E a regra era clara: ladrão roubava e fugia, polícia perseguia e vencia. Agora não? Então qual é a diferença? Agora não tem? Que é isso que você está me dizendo?! Não é possível! Acho que você anda obsoleto, hein?


Mas olha só, eu ainda era bem pequena e depois de “por favor e obrigada” que era o be-a-bá em educação, aprendi que a verdade era um mérito, irmã da honestidade, e ambas premissas dos homens de bem. Um pouco mais tarde, acho que já quase graduada na matéria, compreendi que vez por outra todos escorregavam defendendo algum interesse particular. Mas, àquela altura já havia recebido uma dose extra-forte de envergonhamento – um sentimento que sempre se apossava do sujeito que cometia esse deslize e que por isso, ou tentava se redimir ou tentava se esconder. Se insistisse por aí, a sentença era definitiva: escória. E esse era um grupo ao qual não se queria pertencer. Quando foi que mudou de nome? É verdade que agora se chama esperto? E como tal deve ser revelado exemplo?! Se isso for um fato, meu caro, acabo de constatar que ensinei tudo errado aos meus filhos... Não é possível! Acho que você anda caducando, hein?


Está bem, vou mudar de assunto. Outro dia fui ao restaurante e de repente, um espirro preso. É. Isso mesmo, não ria. Um espirro. Só isso. Deve ser essa mudança louca do tempo. Olhei para o teto procurando a luz. Para de rir, Ataulfo, olhar para a luz solta o espirro, você não sabia? Sei disso desde a minha avó... Pois pasme. Procurei a luz e vi que sobre mesa sim, mesa não, coladas no teto, havia câmeras por todo o ambiente. Quando foi Ataulfo, pelo amor de Deus, me responda, quando foi que deixei de ser cliente e passei a ser suspeita?


Andei em estado comatoso? Fala a verdade. Sem dó e sem piedade. Se você não me disser, quem o fará? Semana passada, tentei conversar numa roda pequena. Ingênua e saudosista foram as melhores palavras que me dedicaram. E as expressões físico-faciais que as acompanhavam não eram exatamente lisonjeiras, o que me fez deduzir que saudade e ingenuidade também não são mais substantivos bem-vindos. Ou aquelas pessoas queriam apenas ser cruéis? Sei lá... De repente a crueldade virou uma benfeitoria... Moralista! Demorei mas lembrei. Foi esta a outra palavra com a qual me (des)qualificaram. Moralista, eu? Confesso, ia começar um pequeno discurso sobre a diferença entre moral e ética, mas desisti. Algum anjo da guarda me soprou no ouvido que seria como falar num dialeto.


Como você vê, ando ouvindo vozes, ando emudecendo, ando derivando.

Um beijo
Guilhermina

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